Uma Análise da Construção de um Ordenamento que Propicie a Desjudicialização
RESUMO
A aquisição originária da propriedade e dos direitos reais a ela inerentes por meio da usucapião é uma das figuras jurídicas mais relevantes no ordenamento jurídico pátrio. Até o advento do Código de Processo Civil de 2015, o procedimento que declarava a usucapião era feito quase que exclusivamente perante o Poder Judiciário. Com o novo diploma processual, que acrescentou o artigo 216-A à Lei de Registros Públicos, passou-se a permitir que o procedimento de usucapião fosse feito perante o Cartório de Registro de Imóveis da comarca em que o imóvel estivesse localizado, sem necessidade de intervenção do Poder Judiciário. O presente artigo irá investigar todos os detalhes sobre a evolução do ordenamento jurídico pátrio na construção do procedimento extrajudicial da usucapião, levantando a hipótese de que as inovações trazidas pela Lei nº 13.465, de 2017, podem ter apresentado papel primordial na efetiva desjudicialização do direito de adquirir a propriedade e outros direitos reais pela usucapião, em decorrência dos fatores que vão ser aqui pormenorizados. Para obter uma conclusão favorável sobre a hipótese levantada, serão utilizados o método dialético e a vertente metodológica jurídico dogmática.
Palavras-chave: Desjudicialização. Registro de imóveis. Usucapião extrajudicial.
INTRODUÇÃO
Alguns problemas que atingem o Poder Judiciário são conhecidos por toda a comunidade jurídica e pela população em geral, tais como: o alto custo de uma demanda, a morosidade em razão da imensa quantidade de ações, a imprevisibilidade das decisões pelo chamado ativismo judicial, dentre outros.
Um fenômeno cada vez mais presente na sociedade contemporânea é a chamada desjudicialização das pretensões dos indivíduos, que consiste, basicamente, na atribuição de alguns poderes decisórios sobre determinados direitos, principalmente patrimoniais, que outrora eram exclusividade do Poder Judiciário, a outros órgãos, como as câmaras de arbitragem e as serventias extrajudiciais.
Em decorrência disso, atualmente é possível a realização de inventários, divórcios, alteração de nome, dentre outros procedimentos de forma extrajudicial, perante as serventias competentes para tanto.
Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, esse fenômeno da desjudicialização atingiu o direito à aquisição da propriedade e dos direitos reais a ela inerentes por meio da usucapião, um instrumento com bastante utilização prática na sociedade brasileira.
Essa via administrativa já existiu em nosso ordenamento, prevista na Lei nº 6.969 de 1981, que regulava uma espécie de usucapião especial administrativa em terras devolutas federais, algo que perdeu o objeto, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, ao vedar, de forma expressa, a usucapião de bens públicos.
Com aplicação mais restrita e de pouca utilização prática, a via extrajudicial para aquisição da propriedade pela usucapião também foi prevista na Lei nº 11.977 de 2009, relativa a um programa habitacional para pessoas de baixa renda, feita por meio de um projeto específico de regularização fundiária.
Durante a vigência do Código de Processo Civil de 1973, a usucapião possuía, inclusive, um procedimento judicial especial dentro do texto normativo, com regras processuais peculiares em relação aos demais, tamanha sua importância e utilização na prática forense.
Primeiramente, este artigo pretende demonstrar a importância da usucapião por meio de uma breve introdução histórica do instituto e uma explicação sobre seus pressupostos e contornos legais.
Os principais fundamentos da usucapião, como a função social da posse e da propriedade, necessidade de regularização fundiária, justiça social no exercício fático dos bens, dentre outros, serão pormenorizados.
Também serão analisadas, de modo breve, as formas de usucapião existentes na atualidade, como institutos de direito material que poderão ser procedimentalizados de forma judicial e extrajudicial.
Após essa introdução sobre o instituto, será feito um recorte histórico para demonstrar a evolução da desjudicialização do procedimento de usucapião em três fases principais: desde o código processual de 1973 até a entrada em vigor do novo código de 2015, passando pela promulgação da Constituição Federal de 1988; da vigência desse novo diploma até o ano de 2017, quando foi publicada a Lei nº 13.465, uma conversão da Medida Provisória nº 759 de 2016; e a partir dessa recente norma, que possibilitou efetivamente
a realização extrajudicial desse procedimento por motivos que serão devidamente pormenorizados, até os dias atuais.
Feita essa análise histórica, pretende-se responder às seguintes indagações: Houve realmente uma desjudicialização efetiva da usucapião no ordenamento jurídico pátrio? Se positiva a resposta, qual foi o grau de importância da Lei nº. 13.465 de 2017 na construção de um ordenamento que propicie essa desjudicialização do procedimento?
Pretende-se concluir utilizando a vertente metodológica jurídico dogmática e o método dialético, que, apesar de o procedimento extrajudicial da usucapião ter sido criado com o Código de Processo Civil de 2015, somente com a Lei 13.465/17 ele se tornou efetivo na prática em razão das regras que serão analisadas ao longo deste artigo, atingindo o objetivo e o clamor social pela desjudicialização, pautado, principalmente, na redução de custos e aumento na agilidade da satisfação.
A AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE PELA USUCAPIÃO
Aspectos gerais
O direito à propriedade é considerado um dos mais relevantes para todas as sociedades ao longo da evolução humana, sendo algo inerente à vida em comunidade e representando, no sentido humano, a própria liberdade individual (ROSENFIELD, 2008, p. 48), tornando-se de suma importância o conhecimento sobre seus desdobramentos bem como sobre suas formas de aquisição.
Em relação à propriedade imóvel, ou imobiliária, o Código Civil de 2002 regula, de forma taxativa, suas formas de aquisição, quais sejam: pelo registro do título, por acessão, pela sucessão hereditária e pela usucapião (BRASIL, 2002).
Usucapião é uma palavra proveniente do latim usucapio, que significa tomar pelo uso, representando um direito delineado na Lei das Doze Tábuas, datada de 455 anos antes de Cristo, que permitia aos cidadãos romanos que exerciam posse sobre bens imóveis por dois anos, e sobre bens móveis por um ano, adquirirem sua propriedade (RIBEIRO, 2006, p. 140-141).
Inicialmente, essa forma de aquisição era reservada exclusivamente para os cidadãos romanos, e, com o passar dos anos, aos estrangeiros fora concedido um direito semelhante, denominado praescriptio longi temporis, que se fundamentava e permitia a defesa da posse para aqueles que a exerciam por 10 e 20 anos contra eventuais ações reivindicatórias, mas não lhe conferiam o direito de propriedade.
Com a evolução da legislação romana surgiram várias restrições para essa aquisição da propriedade em decorrência da posse, utilizada como uma forma de regularizar o título de propriedade que, por diversos motivos, se separava daquele que detinha o domínio efetivo.
Apesar de ser um erro corriqueiro, a usucapio não se confunde com a praescriptio longi temporis, ou prescrição aquisitiva, tendo aquela surgido mais de dois séculos antes desta, que aparece, posteriormente, como um instrumento de defesa para aqueles que não podiam se valer da usucapio por diversos motivos, por exemplo, o fato de não serem considerados cidadãos romanos (RIBEIRO, 2006, p. 149).
Mesmo com essa importante distinção histórica entre a usucapio e a praescriptio longi temporis, é comum grande parte da doutrina ainda se referir à usucapião e prescrição aquisitiva como sinônimos, principalmente pelo fato de os dois conceitos terem se fundido no governo de Justiniano, em 528 depois de Cristo (FARIAS; ROSENVALD, 2018, p. 387).
Essa confusão, no entanto, representa um erro terminológico, tendo em vista que o Código Civil de 2002 separa claramente os institutos, tratando a prescrição como um instituto que extingue a pretensão pelo decorrer do tempo e a usucapião como uma forma de aquisição originária da propriedade e outros direitos reais, baseada, dentre outros fatores, no exercício da posse por um lapso temporal específico, conforme brilhantemente ensina Orlando Gomes (2008):
A confusão entre os dois institutos não se justifica, tais os traços que os separam. É verdade que se aproximam, mantendo ostensivos pontos de semelhança. Têm com efeito como condição o decurso de tempo, em ambos necessários à produção dos efeitos específicos. (...). Mas diferenças profundas afastam-nos. A prescrição é um modo de extinguir pretensões. A usucapião, um modo de adquirir a propriedade e outros direitos reais, conquanto acarrete, por via de consequência, a extinção do direito para o antigo titular. A prescrição opera com base na inércia do sujeito de direito durante certo lapso de tempo. A usucapião supõe a posse continuada (p.185).
Atualmente, a usucapião pode ser conceituada como uma forma de aquisição da propriedade e dos direitos reais a ela inerentes, mediante o exercício da posse por um ou mais indivíduos durante um lapso temporal previsto em lei, juntamente com o cumprimento de outros requisitos legais que podem variar conforme a espécie de usucapião presente no caso concreto (BOCZAR; ASSUMPÇÃO, 2018, p. 18-19).
De forma mais sintética, “é modo originário de aquisição do domínio, através da posse mansa e pacífica, por determinado espaço de tempo, fixado na lei” (RODRIGUES, 2003. p. 108).
Dessa maneira, a usucapião terá a função de declarar a propriedade de um ou mais possuidores que não detinham o título de proprietário sobre o bem, mas que irão adquiri-lo pelo exercício da posse em conjunto com outros requisitos previstos em lei (NADER, 1998, p. 5).
A doutrina majoritária classifica o instituto como forma originária de aquisição da propriedade, uma vez que representa a concretização de uma situação fática sem relação de causalidade entre a nova propriedade reconhecida e o antigo proprietário do bem, não havendo transmissão de vícios ou limitações anteriores sobre ele (GOMES, 1999, p. 163).
Parte minoritária da doutrina considera a usucapião uma forma de aquisição derivada da propriedade, sob o fundamento de que a inércia e a negligência do antigo proprietário é algo inerente a essa situação, havendo, assim, uma relação entre quem perdeu e quem adquiriu o domínio após a ocorrência da usucapião (PEREIRA, 2018, p. 120).
O entendimento dominante, no entanto, liderado por autores como Nelson Rosenvald, Orlando Gomes e Cristiano Chaves de Farias, dentre vários outros, é de que se trata de modo originário de aquisição da propriedade, graças aos efeitos decorrentes desta, que não guardam relação entre o antigo e o novo proprietário, fundamentando-se em importantes fatores que serão pormenorizados adiante.
Fundamentos da usucapião
Outro ponto importante de necessária compreensão sobre o instituto é saber quais são seus fundamentos, ou seja, quais os argumentos e justificativas para conceder a propriedade ou outro direito real a um indivíduo que não o detinha anteriormente.
Parte da doutrina divide a fundamentação em duas teorias: subjetiva e objetiva (PEREIRA, 2018, p. 121). Para a teoria subjetiva presume-se uma intenção do antigo proprietário em renunciar ao direito, em virtude do seu desinteresse pela coisa. Já a teoria objetiva, mais aceita entre os doutrinadores, considera a utilidade social como fundamento principal do instituto, conforme leciona Orlando Gomes:
As teorias subjetivas procuram fundamentar a usucapião na presunção de que há o ânimo da renúncia ao direito por parte do proprietário que não exerce. O raciocínio é este: se o dono de uma coisa se desinteressa de sua utilização durante certo lapso de tempo, é porque a abandonou ou está no propósito de abandoná-la. (...) As teorias objetivas fundamentam a usucapião em considerações de utilidade social (GOMES, 2008, p. 187).
Para os adeptos da teoria objetiva, portanto, a utilidade social justifica esse modo de aquisição da propriedade e demais direitos reais, baseada na recompensa ao indivíduo que trabalha o bem envolvido (PEREIRA, 2018, p. 121), de onde se extraem alguns argumentos como: a função social da propriedade, a função social da posse, a regularização fundiária e a justiça social na utilização dos bens.
A função social da propriedade consiste em um princípio constitucional expresso no artigo 5º, inciso XXIII, e no artigo 170, inciso III, da Constituição da República de 1988, que consagra o caráter social obrigatório inerente à utilização da propriedade, que deverá atender à “sua função social” (BRASIL, 1988).
Um terreno abandonado por seu proprietário, acumulando lixos e se tornando local propício para a propagação de doenças, por exemplo, não está cumprindo sua função social, gerando prejuízo para toda a coletividade.
A partir do momento em que esse terreno é ocupado por um terceiro, que passa a exercer posse mansa e pacífica sobre ele por um longo período de tempo, dando uma destinação econômica, ou até mesmo utilizando-o para sua moradia, ele começa a cumprir sua função social, momento em que surge a figura da usucapião para esse posseiro. Assim:
(...) a usucapião dá prêmio a quem ocupa a terra, pondo-a a produzir. É certo que o verdadeiro proprietário perdeu seu domínio contra sua vontade. Mas não é injusta a solução legal, porque o prejudicado concorre com sua desídia para a consumação de seu prejuízo. Em rigor, já vimos, o direito de propriedade é conferido ao homem para ser usado de acordo com o interesse social, e, evidentemente, não o usa dessa maneira quem deixa sua terra ao abandono por longos anos (RODRIGUES, 2003, p. 109).
A função social da propriedade apresenta-se como uma verdadeira limitação e norma de conduta sobre o exercício dos poderes dominiais sobre o proprietário, que, caso não a respeite, passa a correr o risco de perder seu bem.
Já a função social da posse, algo ainda não expresso em leis, é decorrente do efeito irradiante dos princípios constitucionais e de interpretação e aplicação normativa que respeitem esses princípios, que vêm ganhando cada vez mais força entre os que doutrinam sobre o assunto (ALBUQUERQUE, 2002).
A função social da propriedade não se confunde com a função social da posse, sendo aquela uma limitação ao exercício dos poderes dominiais por parte do proprietário para garantir uma justiça social com sua propriedade, e essa algo inerente ao aproveitamento do bem pelo indivíduo, garantindo direitos fundamentais, como os direitos à a moradia e à saúde (ALBUQUERQUE, 2002).
A necessidade de regularização fundiária apresenta-se como outro fundamento para a usucapião, uma vez que isso poderia gerar maior segurança jurídica para o mercado em geral, tendo em vista a grande quantidade de bens, principalmente imóveis, que aparenta pertencer a uma pessoa, mas, na prática, pertence a outra, que já possui os requisitos necessários para adquirir a propriedade por essa forma de aquisição.
Além disso, a regularização do título imobiliário é algo vantajoso não somente para o particular, que passa a poder realizar negócios jurídicos envolvendo o bem com o título de propriedade, mas também para o Estado, que terá mais informações sobre quem são os verdadeiros proprietários dos bens sujeitos à tributação.
O último fundamento da usucapião representa, na verdade, o conjunto dos demais, e pode ser definido como a justiça social no exercício dos bens, servindo de instrumento para conceder o título de proprietário àquele responsável por dar ao bem uma utilidade social (GOMES, 1999, p. 164).
Como instituto de direito material, essa forma de aquisição da propriedade desdobra-se em modalidades específicas, que terão requisitos diferenciados para se concretizarem, conforme será demonstrado, de forma sucinta, no próximo tópico.
Modalidades de usucapião
A usucapião possui diversas modalidades, cada uma com requisitos e características peculiares, como: tempo necessário de posse, a necessidade ou não de justo título, natureza do bem usucapiendo, dentre outros.
Existem, no entanto, requisitos que se aplicam a todas as espécies de usucapião, que se relacionam com a capacidade das partes envolvidas, a característica do objeto que se pretende usucapir e com o exercício da posse pelo lapso temporal exigido, ou seja:
Para obter a propriedade por intermédio da usucapião, o interessado há de satisfazer os seguintes requisitos, que se apresentam em três categorias: a) requisitos pessoais – dizem respeito à capacidade do possuidor; b) requisitos reais – referem-se à coisa e aos direitos suscetíveis de usucapião; c) requisitos formais – guardam pertinência com a posse e seus predicados (NADER, 2016, p. 125).
Não será qualquer tipo de posse capaz de embasar o pedido de usucapião, posto que a posse ad usucapionem deverá ser exercida pelo possuidor de forma mansa, pacífica, ininterrupta e com animus domini, ou seja, como se dono fosse (RIBEIRO, 2006, p. 701-702).
Além disso, conforme determinado pelo Código Civil, não irão induzir posse aqueles atos praticados pelo possuidor por mera permissão ou tolerância do proprietário, bem como não ensejará posse ad usucapionem aquela exercida em virtude de uma relação obrigacional, como no caso do locatário, por exemplo.
Cada uma das modalidades desse instituto, portanto, possui requisitos diferenciados para concretizar a aquisição da propriedade, sendo comum entre elas apenas a necessidade de “a posse ser mansa, pacífica, ininterrupta, sem oposição e com ânimo de dono” (ANTUNES; SANTOS, 2016, p. 140), além dos requisitos pessoais e reais.
O Código Civil de 1916 regulou apenas duas formas de usucapião: a denominada forma extraordinária, que inicialmente exigia, para a aquisição do direito, 30 anos de posse independentemente de título ou boa-fé, e a ordinária, que exigia o exercício da posse por 10 anos entre presentes (moradores do mesmo município) e 20 anos entre ausentes (moradores de municípios distintos), desde que detivessem justo título e boa-fé (BRASIL, 1916 ).
Esses prazos foram reduzidos, posteriormente, com o advento da Lei nº 2.437, de 7 de março de 1955, para 20 anos no caso da usucapião extraordinária e 10 anos entre presentes e 15 entre ausentes para a forma ordinária.
Com a Constituição de 1934 surge, também, a figura da usucapião rural, que hoje se encontra prevista no artigo 191 da atual Carta Magna, destinada àqueles que não são proprietários de outros imóveis rurais ou urbanos e exercem posse em área rural, sem oposição, por cinco anos ininterruptos.
O Código Civil de 2002 trouxe mais modalidades em seu texto, como a usucapião especial rural, urbana e a usucapião familiar; outros diplomas legais previram outras espécies do instituto, como o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257 de 2001), que trata da usucapião especial urbana, e o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001 de 1973), que cuida da usucapião indígena.
Atualmente, portanto, são as seguintes as modalidades de usucapião previstas em lei: extraordinária, ordinária, especial rural e urbana, familiar, tabular, coletiva e indígena (ANTUNES; SANTOS, 2016, p. 140-142).
A usucapião extraordinária é aquela que exige, com exceção da usucapião de servidão, cujo prazo é de 20 anos, além dos requisitos gerais pormenorizados anteriormente, o maior tempo de posse para a aquisição do domínio: 15 anos, podendo tal prazo ser reduzido para 10 anos caso o possuidor comprove que estabeleceu sua moradia no imóvel ou realizou “obras ou serviços de caráter produtivo” (BRASIL, 2002).
A grande vantagem dessa modalidade é a dispensa de título ou boa-fé, devendo o possuidor comprovar, única e exclusivamente, o exercício da posse ad usucapionem.
A modalidade ordinária da usucapião, prevista no artigo 1.242 do Código Civil, por outro lado, exige justo título e boa-fé para ser concretizada, mas, em compensação, requer o exercício da posse pelo prazo de dez anos.
A usucapião especial rural encontra-se positivada tanto no Código Civil, em seu artigo 1.239, como na própria Constituição Federal, em seu artigo 183, destinada para o possuidor que, durante 5 anos, torne produtiva, por seu trabalho ou de sua família, área em zona rural não superior a 50 hectares, desde que não possua outro imóvel rural ou urbano (GONÇALVES, 2014, p. 262).
A usucapião especial urbana, assim como a modalidade rural, encontra-se positivada tanto na Constituição como no Código Civil, e, também, no artigo 9º do Estatuto da Cidade, privilegiando aquele que, não sendo proprietário de outro imóvel, possuir por cinco anos área urbana não superior a 250 m² para sua moradia ou de sua família (ANTUNES; SANTOS, 2016, p. 141).
A usucapião tabular é disciplinada no parágrafo único do artigo 1.242 do Código Civil, que regula a modalidade ordinária, prevendo que, nesses casos, quando o possuidor apresenta justo título e boa-fé, terá o prazo reduzido para cinco anos caso o bem tiver sido adquirido de maneira onerosa e, “com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico” (BRASIL, 2002).
A usucapião familiar, incluída no Código Civil com a Lei nº 12.424, de 2011, traz um elemento diverso das demais modalidades para seu reconhecimento, qual seja, o abandono do lar pelo cônjuge ou companheiro.
Conforme previsto na lei, portanto, irá adquirir o domínio aquele que exerça posse direta e sem oposição, por dois anos, sobre imóvel urbano de até 250 m², após abandono do lar pelo cônjuge ou companheiro, caso tenha utilizado para moradia própria ou de sua família, e desde que não seja proprietário de outro imóvel, tanto urbano quanto rural (BRASIL, 2002).
Cabe ressaltar que, nessa modalidade de usucapião, o usucapiente já é, necessariamente, proprietário do bem em comunhão com o ex-cônjuge ou ex-companheiro, adquirindo, após o reconhecimento do direito, o domínio exclusivo.
Ao adentrar na esfera familiar, trazendo o abandono de lar como elemento para a caracterização dessa espécie de usucapião, grande parte da doutrina passou a criticá-la, pois, para configurar um abandono, seria necessária uma discussão sobre culpa, que já se encontra ultrapassada no Direito de Família (BRÊTAS, 2018, p. 211).
O Estatuto da Cidade é responsável por regular a usucapião coletiva (ANTUNES; SANTOS, 2016, p. 141), que permite a aquisição do domínio em decorrência do exercício da posse por um conjunto de pessoas residentes em “núcleos urbanos informais” (BRASIL, 2016).
Para que ocorra essa modalidade de usucapião, torna-se necessário que um conjunto de pessoas exerça posse por mais de cinco anos sem oposição em uma área total que, dividida pelo número de possuidores, seja inferior a 250 m² por possuidor, e “desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural” (BRASIL, 2016).
A usucapião indígena é aquela que visa a proteger essa classe de indivíduos, ao possibilitar que “o índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinqüenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena” (BRASIL, 1973b).
Por fim, cabe ressaltar que parte da doutrina ainda elenca um outro tipo de usucapião: a administrativa, prevista na Lei nº 11.977 de 2009, tendo essa nomenclatura por se originar de um ato emanado da Administração Pública (COUTO, 2019, p. 96).
Trata-se, no entanto, na prática, de um instrumento de regularização fundiária criado pelo Poder Público chamado Reurb, ao emitir uma legitimação de posse dos ocupantes que, posteriormente, pode ser convertida em aquisição de propriedade pelo decurso do tempo, assim como ocorre nas outras modalidades de usucapião.
É Importante, no presente estudo, entender que até a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, essas formas de aquisição da propriedade e outros direitos reais eram feitas quase que exclusivamente de forma judicial, por meio de uma demanda morosa e custosa para as partes envolvidas, conforme será demonstrado de forma breve a seguir, analisando a trajetória histórica desse procedimento judicial a partir do Código de Processo Civil de 1973 (BRASIL, 1973ba).
EVOLUÇÃO DO PROCEDIMENTO ATÉ A EFETIVA DESJUDICIALIZAÇÃO
O procedimento no Código de Processo Civil de 1973
A análise histórica procedimental do instituto da usucapião aqui realizada irá usar como ponto de partida a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (BRASIL, 1973a), instituidora do Código de Processo Civil, que vigorou até o ano de 2016.
Durante essa fase, a aquisição da propriedade por meio desse instituto era concretizada mediante um procedimento judicial especial, regulado no Livro IV, Título I, Capítulo VII, da Lei nº 5.869 de 1973, que elencava algumas regras específicas de bastante importância.
Tendo em vista a grande utilização desse procedimento na prática, posto que a usucapião se apresentava como uma solução para regularização das propriedade advindas de contratos que não chegaram a ser registrados, o legislador à época teve especial atenção ao criar esse procedimento especial.
Tratava-se de verdadeira ação judicial declaratória, ou seja, o usucapiente buscava a declaração do domínio por meio de uma sentença que, caso confirmasse o direito, seria enviada por intermédio de mandado ao cartório de registro de imóveis competente para sua transcrição (RIBEIRO, 2008, p. 1.097-1.099).
Grande parte da doutrina não admitia a possibilidade de reconhecimento da usucapião por uma via administrativa, alternativa à judicial, com o argumento de que a contenciosidade, considerada inerente ao procedimento judicial, se fazia bastante presente nesses casos, tendo em vista a importância do direito envolvido na lide:
É inviável proceder ao reconhecimento da prescrição aquisitiva nos estreitos limites da via administrativa. Cuida-se de hipótese impossível de acontecer, cingindo as discussões, na maioria das vezes, a registros públicos, em especial ao imobiliário, quer por procedimentos de dúvidas, quer por requerimentos dirigidos ao oficial ou ao juiz competente (RIBEIRO, 2008, p. 1.099).
Apesar disso, uma via administrativa para a concretização foi criada em nosso ordenamento, prevista na Lei nº 6.969 de 1981, na qual era regulada uma espécie de usucapião especial administrativa em terras devolutas federais.
Essa forma alternativa de procedimento, no entanto, perdeu o seu valor prático com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que vedou, de forma expressa, a usucapião de bens públicos, tornando inócuo o previsto na lei.
O procedimento da usucapião, portanto, era quase exclusivamente judicial, com exceção apenas do supramencionado, além de conter algumas regras peculiares de extrema importância prática, como a prevista no revogado artigo 944, ao determinar que “intervirá obrigatoriamente em todos os atos do processo o Ministério Público” (BRASIL, 1973a).
Além dos requisitos específicos previstos no Código de 1973, o Supremo Tribunal Federal também elaborou dois entendimentos aplicáveis aos processos de usucapião, consolidados nas Súmulas 263 e 391:
Súmula 263: O possuidor deve ser citado pessoalmente para a ação de usucapião.
Súmula 391: O confinante certo deve ser citado, pessoalmente, para a ação de usucapião (BRASIL, 2018a, b).
Ou seja, pela sensibilidade do direito de propriedade envolvido nesses casos, tanto o possuidor quanto o confinante certo do imóvel objeto da ação, deveriam ser citados pessoalmente para a ação de usucapião, não se admitindo a citação por correio, gerando maior segurança jurídica para esses indivíduos.
Essa era a forma de se concretizar a usucapião até a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, que alterou, de forma substancial, o procedimento, além de passar a admitir sua realização de forma extrajudicial, ao acrescentar o artigo 216-A na Lei de Registros Públicos.
O procedimento no Código de Processo Civil de 2015
A Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (BRASIL, 2015), instituiu o novo Código de Processo Civil considerado um verdadeiro marco revolucionário no ordenamento jurídico brasileiro, trazendo, como um de seus princípios basilares, dentre outros de grande importância, a busca pelas formas alternativas de resolução de conflitos, como a conciliação, a arbitragem e, principalmente, a desjudicialização de alguns procedimentos.
Ao entrar em vigor no dia 18 de março de 2016, esse diploma legal extinguiu o procedimento especial da ação de usucapião, que passou a ser regulado como procedimento comum.
Algumas regras específicas que eram aplicadas foram mantidas em artigos esparsos no novo código, em especial a necessidade de a citação dos confinantes ser feita de forma pessoal, positivada no artigo 246, § 3º, cujo texto é claro:
Art. 246 (...) § 3º Na ação de usucapião de imóvel, os confinantes serão citados pessoalmente, exceto quando tiver por objeto unidade autônoma de prédio em condomínio, caso em que tal citação é dispensada (BRASIL, 2015).
A grande inovação, no entanto, que essa lei trouxe em relação à usucapião, revolucionando o modo de concretização desse direito, foi a criação do procedimento extrajudicial, disciplinado no artigo 216-A da Lei de Registros Públicos, que continha a seguinte redação originalmente:
Art. 216-A. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com:
I – ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias;
II – planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes;
III – certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente;
IV – justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel.
(...) (BRASIL, 1973b. Texto original).
Dessa forma, o procedimento, que outrora era realizado apenas perante o Poder Judiciário, passou a ser admitido de forma extrajudicial, podendo ser feito perante o cartório de registro de imóveis da localização do imóvel usucapiendo, mediante requerimento do interessado, representado, obrigatoriamente, por advogado regularmente inscrito no órgão competente.
O próprio artigo trouxe diversos requisitos para concretizar o pedido de usucapião na via administrativa; dentre eles: ata notarial lavrada pelo tabelião atestando o tempo de posse do interessado e dos seus antecessores; a planta e o memorial descritivo do imóvel, obrigatoriamente assinados pelos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do bem e por profissional legalmente habilitado; certidões negativas do imóvel e do requerente além de vários outros documentos capazes de comprovar ser justa a declaração do domínio pela usucapião.
Uma regra, no entanto, era considerada um entrave para a concretização efetiva desse procedimento extrajudicial, relativa à necessidade de assinatura dos titulares de direitos sobre o bem e à notificação desses indivíduos, principalmente o antigo proprietário, para se manifestarem sobre o pedido de usucapião, conforme dispunha a lei na época de sua entrada em vigor:
§ 2º Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretado o seu silêncio como discordância (BRASIL, 1973b).
Ou seja, na falta dessas assinaturas, os titulares de direitos sobre o imóvel, principalmente o antigo proprietário, deveriam ser notificados pelo cartório para concordarem, de forma expressa, com o procedimento em 15 dias, e a falta de manifestação era considerada discordância, o que implicava extinção administrativa desse requerimento e sua remessa para o juiz competente.
Assim, bastava para esses indivíduos ficarem inertes em relação ao requerimento para extinguir o procedimento extrajudicial de usucapião, remetendo-o para o Poder Judiciário após a adequação necessária feita pelo interessado, nos moldes de uma petição inicial.
Essa regra foi fundamentada, principalmente, nos direitos constitucionais de propriedade e no devido processo legal, conforme explica, de forma exemplar, Luiz Antonio Scavone Junior (2016):
Assim, não poderá haver reconhecimento de usucapião extrajudicial sem que os titulares do domínio e de outros direitos reais estejam de acordo, sob pena de ferimento do princípio segundo o qual ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (CF, art. 5º, LIV). Mesmo que se pudesse redarguir, afirmando que não há mais titular de direito real tendo em vista a aquisição originária do possuidor, além de os direitos reais, notadamente a propriedade, constarem da matrícula, a questão constitucional exigirá a assinatura daquele que ostenta, no álbum imobiliário, a condição de titular do domínio, sem o que, embora haja possibilidade de reconhecimento da usucapião, o pedido deve ser judicial (p. 1.131).
Apesar desse importante argumento, tendo em vista os direitos constitucionais envolvidos, muitos profissionais e estudiosos questionavam essa regra, entendendo que ela inviabilizava na prática o procedimento extrajudicial, que não conseguia atingir o objetivo principal: a desjudicialização.
Em razão dessa pressão pela efetivação da via extrajudicial, foi publicada, em 11 de julho de 2017, a Lei nº. 13.465, uma conversão da Medida Provisória nº 759 de 2016, alterando novamente a Lei de Registros Públicos, ao modificar algumas regras procedimentais de extrema importância da usucapião extrajudicial, principalmente aquela relativa à notificação dos titulares de direitos sobre o bem.
O procedimento após a Lei 13.465/2017 – a efetiva desjudicialização da usucapião
Apesar da recente criação do procedimento extrajudicial, algumas regras de extrema relevância que o disciplinavam foram alteradas, de maneira bastante significativa, pelo legislador pátrio.
Isso ocorreu em virtude da criação da Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017, uma conversão da Medida Provisória nº 759, de 2016, possuindo como escopo principal a regularização fundiária em áreas urbanas e rurais, bem como a liquidação de créditos relacionados aos assentados da reforma agrária (BRASIL, 2017 ).
Além de modificar diversos dispositivos legais contidos em outras leis, como o Código de Processo Civil e a Lei nº 11.977, de 2009, a Lei nº 13.465 inovou quando criou direitos inéditos no ordenamento jurídico, como o direito real de laje, ao incluir o Título XI, no Livro III – Direito das Coisas – do Código Civil de 2002.
Versando sobre temas de extrema importância, essa inovadora lei sofre, atualmente, três questionamentos acerca de sua constitucionalidade, em aspectos formais e materiais, por meio de Ações Diretas de Inconstitucionalidade.
A maior influência desse instrumento normativo na trajetória da desjudicialização da usucapião ocorreu em decorrência das inúmeras modificações que ele realizou no procedimento previsto no artigo 216-A da Lei de Registros Públicos.
A principal modificação diz respeito à interpretação sobre o silêncio dos titulares de direitos sobre o bem objeto do procedimento ou sobre os imóveis confinantes, após terem sido notificados pelo Cartório de Registro de Imóveis.
Antes do advento da Lei nº. 13.465, o silêncio dos indivíduos supramencionados, após a notificação, inclusive por edital, era interpretado como discordância tácita ao pedido de usucapião formulado perante o Cartório competente.
Essa interpretação, no entanto, sobre o silêncio dos titulares de direitos sobre o imóvel e sobre os imóveis confinantes era, também, vista por muitos como um grande entrave para a efetivação do procedimento criado com o Código de Processo Civil de 2015:
Portanto, não estando a planta assinada pelos titulares de direito real registrados ou averbados na matrícula dos imóveis confinantes, esses serão notificados para oferecer concordância, interpretando o silêncio como discordância, o que acarretará na rejeição do pedido extrajudicial por inadequação da documentação (parágrafo 8º) e a obrigatoriedade de propositura de ação judicial para declaração da usucapião (parágrafo 9º), sepultando de alguma eficácia e utilidade o procedimento de usucapião extrajudicial (PEREIRA, 2016).
Para esses doutrinadores, como Leonardo Brandelli, o fato de que, bastando a inércia dos possíveis interessados no reconhecimento extrajudicial de aquisição da propriedade ou outro direito real, isso estimularia a falta de manifestação expressa, tornando, dessa forma, o procedimento inócuo:
Ora, se algum legitimado passivo certo recebe a notificação e se mantém silente durante o prazo para impugnar, a presunção que deve haver é a de que não tem ele interesse em impugnar. Se tivesse, o faria no prazo. Alguém que, recebendo a notificação, verifique que há afronta a seu direito, não se calará; impugnará o pedido feito. Ao contrário, alguém que, notificado, perceba que em nada lhe afeta o pedido, não terá o menor incentivo para manifestar-se positivamente no processo administrativo, salvo se por questões de amizade ou similares (BRANDELLI, 2016, p. 132-133).
Ou seja, a inversão da regra de interpretação sobre o silêncio, para essa parte da doutrina, importaria na efetividade do procedimento extrajudicial da usucapião, desafogando o Poder Judiciário e corrigindo seu problema estrutural ao retirar grande parte das demandas de um procedimento do seu âmbito de atuação (BRANDELLI, 2016, p. 133).
Em virtude desse clamor pela efetivação do procedimento extrajudicial, em uma busca por maior celeridade e economia nos casos de reconhecimento da usucapião, a Lei nº. 13.465, de 2017, resultado da conversão da Medida Provisória no 759, de 2016, mudou drasticamente a regra de interpretação sobre a falta de manifestação dos titulares de direitos registrais envolvidos, após a notificação feita pela serventia extrajudicial.
Essa regra de interpretação, portanto, foi invertida com a nova lei, ao determinar que, caso os titulares de direitos sobre o bem objeto do pedido de usucapião permanecessem inertes após a notificação, estariam eles concordando de maneira tácita com o procedimento.
Para muitos, essa modificação da regra foi o que efetivou a desjudicialização do procedimento da usucapião, uma vez que a presunção da discordância após o silêncio seria considerada um verdadeiro entrave para o procedimento:
Nesse ponto, a Lei nº. 13.465/17 alterou o artigo 216-A, da LRP, passando a interpretar como concordância a falta de manifestação do titular do direito registrado ou averbado na matrícula do imóvel usucapiendo ou do imóvel confrontante, após notificação pelo registrador de imóveis. Na redação original, a inércia dessas pessoas fazia presumir sua discordância, impedindo o prosseguimento da usucapião na via administrativa, sendo necessária sua remessa ao poder judiciário (BOCZAR; ASSUMPÇÃO, 2018, p. 144-145).
Ora, percebe-se a importância desse instrumento normativo na construção de um ordenamento jurídico que propicie efetivamente a desjudicialização da usucapião, em razão das significativas mudanças mencionadas anteriormente.
Essas modificações fundamentam-se justamente na necessidade moderna de criação de novos meios alternativos para a satisfação das pretensões, como a desjudicialização dos procedimentos, em virtude da crise que atinge o Poder Judiciário e acaba prejudicando todos os indivíduos (ANTUNES; SANTOS, 2016, p. 145).
As serventias extrajudiciais apresentam-se como um excelente meio de desafogar as demandas do Judiciário, já fazendo isso em casos de inventários, divórcios, retificação de registro e, a partir dessas recentes leis, de usucapião feita de forma pacífica.
Dessa forma, essa nova via para a aquisição da propriedade tornou-se extremamente atrativa, tendo em vista a redução de custos e a agilidade do procedimento em comparação àquele proposto perante o Poder Judiciário.
A Lei nº. 13.465 representa, por corolário lógico, na construção de um ordenamento que propicie a desjudicialização, o instrumento normativo que efetivou a possibilidade da concretização da usucapião por uma via alternativa à tradicional, que sofria com os conhecidos problemas que afetam o Poder Judiciário, como a morosidade e o elevado custo.
CONCLUSÃO
Procurou-se, no presente estudo, chegar-se à conclusão de que a Lei nº 13.465 de 2017 foi o instrumento final em um processo de evolução legislativa que efetivou a desjudicialização do procedimento da usucapião.
Para isso, foi abordado, primeiramente, os aspectos gerais sobre o instituto da usucapião como direito material, por meio de uma breve análise histórica de sua evolução, desde os tempos mais remotos até sua introdução no ordenamento pátrio.
Foi demonstrado, também, que seus principais fundamentos se resumem na função social da propriedade e da posse, na necessidade de regularização fundiária e na justiça social no momento de utilização dos bens.
Ainda, foram pormenorizadas suas principais modalidades, algo que se apresenta como de necessário conhecimento por parte do operador do direito, tendo em vista sua grande utilização prática por indivíduos de todas as camadas sociais.
Após o introdutório sobre o instituto, foi feito um recorte histórico com o intuito de demonstrar como ocorreu a construção normativa do ordenamento jurídico na busca por uma nova norma que propicie a desjudicialização efetiva do procedimento, desde o Código de Processo Civil de 1973 até a Lei nº 13.465 de 2017.
Viu-se que o procedimento extrajudicial da usucapião, apesar de ter surgido anteriormente em leis esparsas, somente ganhou verdadeira importância no cenário brasileiro com o Código de Processo Civil de 2015, que, ao acrescentar o artigo 216-A na Lei de Registros Públicos, criou um procedimento que abarcasse as principais modalidades dessa forma de aquisição da propriedade e de outros direitos reais a ela inerentes.
Apesar de o procedimento ter sido regulado, sua efetivação, na prática, era difícil de ocorrer, principalmente pela regra que tratava da necessidade de assinatura dos titulares de direitos sobre o imóvel.
Caso não houvesse alguma dessas assinaturas no momento de requerimento da usucapião perante o Cartório de Registro de Imóveis, o titular do direito deveria ser notificado, bastando que ele não respondesse a essa notificação para que presumisse sua discordância, extinguindo a via administrativa e remetendo o procedimento para o Poder Judiciário.
Na prática, portanto, até mesmo um antigo proprietário que não tivesse mais interesse sobre o bem poderia permanecer inerte, o que seria mais cômodo, prejudicando todo o procedimento extrajudicial.
Em razão da pressão da comunidade jurídica na busca pela desjudicialização da usucapião, a Lei nº. 13.465, de 2017, que surgiu para regular alguns instrumentos de regularização fundiária, modificou novamente o artigo 216-A da Lei de Registros Públicos, invertendo as regras que dispunham sobre a concordância dos titulares de direitos sobre o bem após a notificação.
A partir de então, caso os titulares de direitos sobre o bem permaneçam inertes após a notificação, que pode chegar a ser efetivada inclusive por edital, o seu silêncio implicará concordância tácita ao procedimento.
Dessa forma, a regra, que era considerada o maior entrave para a concretização da usucapião extrajudicial, muda completamente, possibilitando que esse procedimento se efetive na prática.
A conclusão obtida com o presente estudo, portanto, é que o ordenamento jurídico evoluiu, ocorrendo a efetiva desjudicialização do procedimento de usucapião, em decorrência, principalmente, do advento da Lei nº. 13.465, de 11 de julho de 2017, satisfazendo a tendência moderna de busca por meios alternativos de solução de conflitos ao Poder Judiciário.
REFERÊNCIAS
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